Como a
Alpargatas transformou as sandálias Havaianas numa das raras marcas brasileiras
conhecidas – e valorizadas – no exterior
Elas estão nas prateleiras de lojas de departamentos chiques como Saks Fifth
Avenue e Bergdorf Goodman, em Nova York, e Galleries Lafayette, em Paris.
Ocupam espaço em vitrines da badalada Via Spiga, em Milão, dividindo a cena com
as marcas Dior e Prada. No ano passado, foram as sandálias escolhidas pelo
estilista francês Jean-Paul Gaultier para calçar as modelos que desfilaram sua
coleção de verão. Personalizadas, chegam a custar 100 libras (quase 500 reais)
em algumas modernas lojas inglesas. As brasileiríssimas Havaianas, lançadas
pela São Paulo Alpargatas em 1962, são a bola da vez na cena fashion
internacional. O chinelo de borracha que já foi considerado “coisa de pobre” no
Brasil, hoje enfeita pezinhos milionários, como as das atrizes Julia Roberts e
Sandra Bullock, e os das top models Naomi Campbell e Kate Moss. As Havaianas de
hoje – como as de antigamente – não soltam as tiras e não têm cheiro. A
diferença é que, agora, elas vendem pra dedéu lá fora.
Nos últimos anos, a receita gerada pela exportação do produto – um
aparentemente simples chinelo de borracha – praticamente quadruplicou. A
expectativa da Alpargatas é que neste ano sejam vendidos 5 milhões de pares no
mercado internacional. Tal volume ainda é pequeno quando comparado à produção
total da empresa – em 2002 foram fabricados mais de 130 milhões de pares de
calçados, sendo 115 milhões de Havaianas. Em 2001, as vendas do produto no
varejo atingiram 600 milhões de reais. (A Alpargatas também é dona das marcas
Rainha, Topper, Mizuno e Timberland). No entanto, a curva ascendente do produto
indica para o carioca Fernando Tigre, presidente da empresa, que um grande
desafio poderá ser cumprido. “Até o final de 2004, 15% do nosso faturamento
deverá vir das exportações”, diz ele.
Para
chegar lá, montanhas de pares de Havaianas terão de ser vendidos. No ano
passado, apenas 3% do faturamento da empresa foi gerado com exportações. “Seria
uma meta fácil se o presidente não fosse tão cabeça-dura”, diz Tigre, sobre ele
mesmo. “Quero exportar uma marca e não um produto”. Calcule quantos bens de
consumo fabricados no Brasil têm sua marca reconhecida no exterior e você terá
uma dimensão do desafio imposto por Tigre.
O trabalho de construção de uma marca internacional ganhou fôlego em janeiro de
2001, com a contratação de executiva paulista Angela Tamiko Hirata para o cargo
de diretora de comércio exterior. “Até então, nossa estratégia de exportação
era oportunista, e a pessoa que cuidava da área nem falava inglês”, afirma
Tigre. Filha de japoneses, Angela havia pisado na Alpargatas dois anos antes
para trabalhar como consultora de mercado externo. Para fazer a Havaianas
brilhar lá fora, ela lançou mão de duas competências pessoais. A primeira
delas, a fluência em quatro idiomas – além do japonês, herdado dos pais, Angela
fala inglês, espanhol e italiano. A outra, a experiência com exportação de calçados.
De 1989 a 1997, ela foi a responsável por abrir o mercado asiático para a
gaúcha Azaléia, a maior fabricante brasileira de calçados femininos e de tênis.
“A percepção do mercado internacional nessa época era de que o sapato
brasileiro não tinha muita qualidade”, diz. “Foi aí que aprendi o valor que uma
marca pode ter”. Angela não carrega nenhum dos estereótipos dos executivos
ligados ao mundo da moda. Aos 59 anos, fala baixo – mas firme –, veste roupas
discretas, quase apagadas, e mantém o cabelo cortado no clássico estilo chanel.
Mas foi sob o seu comando que as exportações das antes prosaicas sandálias de
borracha deslancharam. Quando Angela assumiu o cargo, a Alpargatas exportava
para 15 países, a maioria deles na América Latina. Atualmente comandando uma
equipe de 15 pessoas, ela faz os produtos da Alpargatas chegar a 52 mercados
espalhados pelo mundo.
Uma de suas primeiras medidas para chegar a esses destinos foi reorganizar a
rede de distribuidores. Na Europa, por exemplo, a mudança foi drástica. Até
2001, a Alpargatas tinha um distribuidor em Portugal, encarregado de repassar
os produtos também para a França e para a Itália. Não funcionava. “O revendedor
não pensava na marca, e sim no volume”, diz Angela. A solução foi afastá-lo do
negócio e buscar parceiros mais afinados com o novo posicionamento.
O mesmo aconteceu nos Estados Unidos. Depois de uma discussão com um
distribuidor que insistia em levar as Havaianas para a rede varejista Wal-Mart
– para ganhar escala –, Angela percebeu que era preciso encontrar um novo
representante. A escolhida para substituí-lo foi a americana Kerry Sengstaken,
então assessora de imprensa de Alpargatas nos Estados Unidos. Dona da
Stylewest, empresa de relações públicas da Califórnia especializada em moda
surfe e praia, Kerry conhecera as Havaianas três anos antes, durante uma feira
californiana de produtos para surfe. Adorou o produto e logo depôs foi
contratada para divulgá-lo no maior mercado do mundo. A partir daí, começou a
mandar sandálias para os jornalistas de moda a cada três ou quatro semanas. “No
início, eles não se empolgaram”, afirma Kerry. “Mas depois passei a receber
ligações de editores pedindo novos pares”.
Apesar de
as havaianas ganharem páginas nos editoriais de moda das edições americanas de
revistas como Elle, Cosmopolitan e Vogue, as vendas não deslanchavam. Kerry
então decidiu mostrar pessoalmente à diretoria da Alpargatas um plano de
marketing que impulsionasse as vendas. “Eles gostaram tanto que resolveram me
entregar a distribuição”, diz Kerry. Foi dela, por exemplo, a idéia de
distribuir as Havaianas aos indicados ao Oscar deste ano. Dois meses antes da
cerimônia, Kerry montou uma operação de guerra. Pediu à Alpargatas que fosse
desenvolvido um modelo sofisticado, decorado com cristais austríacos Swarovski
e uma caixa especial para colocar o calçado. Paralelamente, entrou em contato
com os agentes das 61 celebridades indicadas ao prêmio – entre elas, Jack
Nicholson, Nicole Kidman e Renée Zellweger – para saber que número calçavam. No
dia seguinte à premiação, todos eles receberam sua sandália. Iniciativas como
essa devem ajudar a Alpargatas a vender 1 milhão de pares de Havaianas aos
varejistas americanos neste ano.
Os antigos distribuidores em linha com a nova estratégia da empresa foram mantidos.
É o caso da brasileira Amélia Maribondo, uma estilista de 40 anos que desde
1997 é responsável pelas vendas das Havaianas na Austrália. Para lançar o
produto por lá, ela também recorreu aos formadores de opinião. No primeiro ano,
vendeu 2500 pares – cada um deles custa, em média, 11 dólares.
Kerry e Amélia têm algumas características parecidas: ambas são jovens, atuam
em mercados que lhes são familiares e têm afinidade com o produto. Trata-se do
perfil de distribuidores perseguido pela Alpargatas. “Lá fora a marca está em
fase de posicionamento, por isso o cuidado com a distribuição é fundamental”,
diz Paulo Pereira Lalli, diretor da área de sandálias da empresa.
Para levar as Havaianas a esses mercados, a Alpargatas evitou a publicidade de
massa e apostou em iniciativas alternativas. No Havaí, patrocina um campeonato
de surfe. Na França, faz parcerias com a MTV local que lhe garantem exposição a
baixo custo. Neste ano, a verba para o marketing das sandálias não chega a 4
milhões de reais. “Nossa única mídia mundial é a revista Wallpaper, que tem
tiragem de apenas 150 000 exemplares e chega aos formadores de opinião do mundo
todo”, afirma Rui Porto, diretor de comunicação e mídia da Alpargatas. Será que
no futuro isso será suficiente? “Essa é uma estratégia de entrada, mas não será
de manutenção”, diz Ângela da Rocha, coordenadora da área de marketing e
negócios internacionais do Coppead, instituto de pós-graduação em administração
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “As Havaianas são um produto fácil
de ser copiado e, para se defender da pirataria, em algum momento será preciso
investir agressivamente em marketing”. (Na verdade, a pirataria á começou. A
Nigéria hoje abastece boa parte da África com cópias das sandálias
brasileiras).
O desenvolvimento de produtos específicos para o mercado externo foi outro
ponto trabalhado pela Alpargatas. O mercado australiano, por exemplo, conta com
quatro cores exclusivas de sandálias, entre elas o verde-militar e o cáqui, e
com modelos também inéditos, como o camuflado. “Se houvesse mais flexibilidade
na fábrica, poderíamos lançar outras novidades”, diz a distribuidora Amélia.
Para os franceses que insistem em calçar seus chinelos mesmo no inverno, a
Alpargatas criou uma meia para ser usada exclusivamente com as sandálias. Até
mesmo a numeração teve de ser ampliada: enquanto aqui os modelos masculinos vão
até 44, os exportados chegam a 46.
Mas quanto tempo vai durar a febre das Havaianas no mercado internacional?
“Renovar o interesse do consumidor estrangeiro na marca é o grande desafio”,
afirma Amyris Fernandez, professora de marketing do Ibmec, de São Paulo. No
livro O Ponto do Desequilíbrio (editora Rocco), o jornalista americano Malcolm
Gladweel analisa como acontecem as epidemias: das novas tendências de roupas ao
surto de determinadas doenças. Um dos casos estudados por Gladweel é o dos
tênis Airwalk que, depois de explodir nos Estados Unidos no início da década de
90 como um calçado para esportistas e gente antenada com a moda, sofreram um
extraordinário declínio das vendas a partir de 1997. Por quê? O fabricante
deixou de ouvir o consumidor – e de fabricar o que ele gostaria de comprar – e
massificou as vendas. As lojas especializadas, que até então recebiam modelos
exclusivos, passaram a ter nas prateleiras os mesmos produtos das grandes redes
varejistas de calçados. O Airwalk, como objeto de desejo, desapareceu. A fim de
evitar um destino semelhante, a Alpargatas se prepara para lançar uma segunda
marca no exterior, a Sea Club. “Com ela poderemos chegar às grandes cadeias e
aumentar o volume”, afirma Angela Hirata.
Não há dúvida de que o sucesso da marca no exterior seria mais difícil se as
Havaianas não tivessem sido reposicionadas, algum tempo antes, no mercado
interno. Até 1993, havia apenas um modelo de sandália – aquele de duas cores,
eternizado em comerciais protagonizados pelo humorista Chico Anysio –, cujas
vendas haviam estacionado em 76 milhões de pares. No ano seguinte, foi lançada
a versão monocromática, que deu cara nova a um produto que permanecera intacto
por mais de três décadas. A partir daí, as campanhas passaram a ser estreladas
por musas como Vera Fischer, Malu Mader e Luma de Oliveira, e os novos modelos
se multiplicaram. Atualmente, os chinelos podem ser encontrados tanto em bancas
de camelôs, quanto na paulistana Daslu, a butique mais sofisticada do país. A
diferença está, basicamente, nos pés de quem vai calçá-los.
MAIOR E MAIS FORTE
A compra
da Santista Têxtil é mais um passo para a consolidação no exterior
Em 18 de junho, a São Paulo Alpargatas e a Camargo Corrêa (sua controladora,
com mais de 61% do capital votante) anunciaram a compra da Santista Têxtil, com
faturamento de 1 bilhão e lucro de quase 78 milhões de reais em 2002. Com a
venda (cujo valor não foi divulgado), saem de cena o grupo Bunge e o Bradesco,
que detinham, respectivamente, 45% e 10% da Santista Têxtil. O controle, a
partir de agora, passa a ser compartilhado pela Alpargatas e pela Camargo
Corrêa, únicos donos da empresa.
A compra sinaliza dois movimentos. O primeiro deles, a opção pelo setor têxtil
como um dos negócios prioritários da Camargo Corrêa, que atua também nas áreas
de engenharia, de cimento e de energia. Em janeiro deste ano, o grupo assumiu o
controle da Alpargatas (da qual já era acionista, com 38,5% das ações
ordinárias) ao adquirir a participação de 22,7% que o Bradesco possuía na
empresa. Além disso, a Camargo Corrêa é dona também da Companhia Jauense
Industrial, fabricante de tecidos localizada no interior paulista.
O segundo movimento é tentar aumentar ainda mais as exportações da Alpargatas.
No ano passado, quase 45% do faturamento da Santista Têxtil foi gerado pelas
vendas para o mercado internacional. Com cinco fábricas no Brasil, duas na
Argentina e uma no Chile, a empresa tornou-se uma das maiores fabricantes de
denim do mundo.
Não é difícil enxergar as possibilidades de sinergia entre o jeans da Santista
Têxtil e as Havaianas da Alpargatas. “Estamos estudando, por exemplo, a
distribuição conjunta em alguns mercados”, diz Fernando Tigre, presidente da
Alpargatas. Tigre, aliás, já começou a sentir os efeitos da mudança. Nos
próximos dias ele deverá anunciar sua saída da presidência da Alpargatas, cargo
que ocupa desde 1997. Mas não romperá o vínculo com a empresa. Continuará
presidindo o conselho de administração e também terá assento nos conselhos da
Camargo Corrêa e da Santista Têxtil.